última fronteira pátrida (10/04/07)
sair do Farol
Santa Marta.Jericoacoara
um brinde
"quero ver você em Xangri-lá..."
o cara do atalho
Saímos de Floripa até meio tarde da manhã. Queríamos deixar a casa com todo o capricho que era de costume ali. E seguimos pela BR-101, de péssimas condições, das piores que transitamos. E o tal do vento Sul... Impressionante: viajamos contra o vento e por conta disso, o consumo de gasolina foi bem maior. E dava para sentir o esforço que o carro fazia, para vencer a força contrária.
Passamos por alguns pontos sugeridos. Alguns, porém, não corresponderam à nossa expectativa... Lindas praias sim, mas uma tristeza... Seria ressaca de feriado? Vimos cidades fantasmagóricas, Laguna era uma delas... Estava tudo tão mórbido que arriscamos seguir por balsa, na esperança de que no Farol de Santa Marta o clima estivesse melhor. Melhor, realmente estava. Mas ainda não era lá essas coisas. A paisagem? Belíssima. Mas não é só isso que conta...
a cor
pro Farol de Santa Marta
[ficamos numa casa, da dona de um supermercado que entramos. Foi um achado, a casa era um mimo. Pagamos bem pouco e dormimos bem.
SUGESTÃO KONIDOMO: no Farol Santa Marta, procure dona Ruty Aguiar – (48)9158 8839 ou 36462331, ela aluga casas]
Quando tudo parece turvo, no fundo há um sol omisso. Não demora, ele aparece. No feriado também foi assim, a gente até arriscou a praia. Os caminhos se abrem, como mágica, um ponto de luz. Falta pouco de Brasil, falta muito a resolver. Documentos, providências de agora. Estamos correndo com isso, já que estamos quase saindo do país. Coisas de fronteira, de hesitação; coisas também de coração, portas fechadas há pouco, alguns ressentimentos por e-mail... A gente entristece, sente até mais as dores, fragilizados... Mas, no meio disso tudo, afagos surpreendentes, gente que aparece, mais sóis que tempestades... E, como a ilustrar tudo isso, a pia desentupida, feitos de Júlio, artimanhas dele, canos abertos, caminhos livres...
[agradecemos com vigor e sorrisos plenos ao nosso estimado Jason Fernandes. Além de ‘consogro’, ele é um grande amigo de Fortaleza. Somos eternamente gratos pelos seus préstimos jurídicos na elaboração do documento de autorização do uso de imagem (para nossos acolhedores). Mas, principalmente, agradecemos por representar um alento, num momento de desânimo. São pessoas e ações como essa que nos dão cargas novas para continuarmos a jornada]
[agradecimentos]
- à Sumara Lisboa, pela acolhida, pelos cuidados, pelos quitutes, pelos recantos apresentados, pela voz mansa, pela fibra, pelo grande exemplo de atuação profissional, pela farofa de grãos, pela babosa de companhia para viagem, pelos biscoitos, e todos os presentes;
- ao Doca, pelas pizzas saborosas, pelos momentos de encontro, agradáveis e tranqüilos;
- ao Fernando, pelos passes do R.U., pela atenção constante, por sua educação e fineza admiráveis, por guardar o sapato esquecido, pelo jornal de lembrança, pelos serviços de bar, pelas conversas memoráveis;
- ao Hugo, por sua delicadeza, por sua vontade de aprender, de participar, pela permissão de conhecermos essa figura única e pelo jornal de presente;
- ao Ney e à Déa, proprietários do ‘Sítio Çaracura’, pela grandeza do casal, por nos permitir conhecê-los, por abrir as portas desse lugar para todos aqueles que lá aparecem, pela oportunidade de assistirmos a um jeito de melhorar o mundo, pelos alimentos, pelo aprendizado, pela contribuição com a natureza, pela magia incontestável que há nos dois e no lugar que vivem;
- ao Jason Fernandes, advogado e amigo, por seus feitos e maneira gentil de nos ajudar.
Em Jurerê, não há nada de tão radical: não é tão esnobe como dizem no centro, mas também não é popular. Há mansões, há classe média. As praias são gratuitas (!), embora o chuveiro custe a soma de R$ 1,75 pelo banho. Os supermercados possuem, no geral, preços normais, lan house é acessível e as locadoras, oferecem promoções atraentes.
Com estas condições, acabamos ficando mais caseiros e assistimos a alguns filmes. Com a frente fria, provocada pelos ventos do Sul, esse lazer tornou-se ainda mais freqüente. Assim, locamos, em um desses dias, a “Casa Monstro”, filme muito adequado para a região. Nada de sombrio, mas abandonado. As casas em Jurerê são agressivas, embora apáticas, humanizadas, apesar de mortas.
Nosso olhar pode ser severo na mesma moeda, mas é genuíno. Estando no lugar, um arquiteto vê e sente. O apuro estético é instantâneo, ou o olho agrada, ou rejeita. Ali, nós três arquitetos, rimos em um passeio noturno, certa vez. Tanta era a canalhice construtiva pelo bairro. É muito dinheiro. E muito mau gosto.
Nossa acolhedora viajou. Foi passar a Páscoa com a família, em Lages. E ficamos cuidando da casa dela, intercalando afazeres domésticos com atividades do projeto. Nosso feriado foi assim: a temperatura caiu, roupas de inverno espalhadas pela casa para tomar ar, textos sempre a redigir, consertos e aprimoramentos no carro, pouso próximo a preparar, um lazer esporádico aqui e ali. Almoço de páscoa, com lentilha, tomates recheados de ricota, legumes e farofa. Chocolates ínfimos, mais descanso e recarrego de energias, tendo o tempo como humor...
Havia um feriado no meio do caminho... E como sol, caiu sobre nós a possibilidade de um apartamento desabitado no continente, em Floripa. Perfeito para nós, sobretudo porque estaria disponível em um dia conveniente também para nossa acolhedora, que iria viajar. Enfim, se tudo tivesse dado certo, também seria engrandecedor, poderíamos conhecer mais uma face da cidade. Chegamos a nos despedir, trocamos agrados, dentre galinhas, farofa de grãos (receita da mãe da Su), biscoitos integrais para levarmos na viagem, até uma plantinha.
Enquanto jogávamos as coisas no carro, Sumara e um colega da Eco & tao visitaram uma obra, projeto deles. E voltaram quando pensávamos em partir. Quando o fusca deixou a garagem ela balançou a mão, com seu sorriso sereno. Os olhos meio caídos, soltei um beijo com os dedos. E seguimos para a UFSC, pois lá era o combinado para que encontrássemos nosso amigo, do apartamento. Além disso, precisava pegar meu tênis que havia esquecido...
E foi como um rápido passeio: a história desandou. Readquirimos o sapato, emprestamos uma extensão para um dos estudantes (preparavam uma festa) e jantamos no R.U. Estávamos famintos, era comer para pensar melhor no que fazer, ir ou ficar, procurar um lugar, ou voltar para Jurerê. E achamos mais prudente evitar a estrada no feriado, queríamos conhecer um pouco a Floripa do outro lado, mas enfim, também queríamos sossego, para alento do chão caído. E voltamos para a casa da Su, que foi um amorzinho conosco... lado bom de voltar foi continuar a empreitada de organização e receber um novo abraço de reencontro...
[uma nova companhia de viagem: uma muda de babosa, que Su nos deu, e batizamos de ‘Barbosa’, em homenagem ao personagem de Ney La Torraca, do exinto TV Pirata]
A Su é diversa e trabalha o tempo inteiro. Faz parte de um grupo de arquitetos-urbanistas que trabalha com bioconstruçao, permacultura e materiais naturais, a Eco & Tao. É membro da Associação catarinense de bambu, faz parte de um grupo de orquestra de berimbau. E dedica todo seu tempo em casa projetando, pensando, levando em conta sempre a responsabilidade ambiental. Dos projetos de arquitetura ao que come, à cura de uma debilitação do organismo, não é extremada, mas recorre antes aos métodos menos agressivos e artificiais. De vez em quando, quando reparávamos, ela estava obstinada no feitio de uma maquete, de algum projeto em andamento.
Não é apenas a admiração de amizade, mas saber que é possível, conforta. No momento em que muitos de nossa profissão batalham e mesmo assim necessitam de uma renda extra, vinda de outra natureza, conforta mesmo saber que há caminhos. Há caminhos para um outro tipo de arquitetura, há preocupações com o futuro, com o mundo, com a sustentabilidade. E é difícil como o é para qualquer grupo em início de carreira, as demandas são equivalentes. Mas imaginamos que a realização enche o peito mais profundo, sem remorsos, garantindo ainda boas condições de vida e qualidade para as gerações futuras.
“não estou me especializando em bioconstrução, estou me generalizando em bioconstrução”
Sumara Lisboa, arquiteta-urbanista
Mosquitos gigantes. Seria algum desequilíbrio ecológico? Super nutrição de venenos? Enormes, a gente via até a bolsa encher-se de sangue. Sangue nosso. Sanguessuga, malditos vampiros! E, como para tudo, a Su tentava os métodos naturais. Usamos citronela, levedura de cerveja. Não apenas para conviver (e não combater) com os insetos, mas para nutrir-nos! Alimentos orgânicos, sucos de laranja, para prepararmo-nos para o frio. E quem dera existisse sabonete, xampu, hidratante, tudo de citronela!
Sempre assoberbados de tarefas, não era diferente no momento. Aliás, jamais estivemos tão repletos de compromissos, atividades, tudo para fazer.
Passamos os primeiros dias concentradíssimos, todos os textos do mundo por escrever, todas as fotografias do universo para tratar. Roupas para lavar, tudo para arrumar no carro, agendas, não paramos. Sequer fomos à praia, embora estivesse tão perto.
E, de noite, até tivemos um merecido lazer: além da caminhada com Su pelo lugar, alugamos um filme e comemos uma pizza, feita com muito capricho pelo Dóca.
Domingo foi o fim. E não sabíamos para onde íamos. Até que ela chegou, ainda quando dormíamos. E colocou a cabeça dentro da barraca e esperou que despertássemos.
Era nossa amiga, que encontramos no primeiro dia em Florianópolis, a Sumara. Ela nos convidou para um passeio, mas estávamos acordando, ainda desorientados. Precisávamos ainda arrumar tudo, deixamos para depois. Ela ficou de voltar no fim da tarde e nos convidou para ficarmos em sua casa. Delícia. Ela mora em Jurerê, praia ao norte da Ilha. Perfeito. Mais que perfeito para dois desabrigados.
E quando chegamos lá, era o cheiro da paz no ar. Perfume de flores, de chá, de marcela, de jasmim, mesa posta, aconchego. Aconchego.