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29.2.08

Terapia da libertação

Terapia da libertação (parte I)

O tempo nublado é água em suspensão. Tenso o céu, a certeza que se tem é que uma hora chove. Se chove forte, fraco, pouco, muito, às vezes não se pode precisar. Nem especialistas, por mais que a tecnologia para tudo hoje seja o que seja – explosões de satélite que o diga; guerra nas estrelas, war fase atmosférica?

É que o tempo agora é este: uma nuvem puxa outra, como abrir uma aurora? Assim: um dia se desperta e se sublima os fatos. E olhe que tantas travas não são fáceis de decodificar. Todos temos nossos absurdos. Um passo para a libertação é esquecer um pouco a limitação e andar na chuva. A água que molha é menos fria que a da imaginação.

Terapia da libertação (parte II)

Abriu a porta e entrou. O homem lembrou sua condição. Não, e não faz mal. Saiu com todos seus pedaços.

Terapia da libertação (parte III)

só para srtas comércio c/s experiência
4h diárias bom salário
CV 10/12hs rua tal, subsolo, of. X.

Circulei o anúncio,óbvio, mas com uma mistura de alegria e desconfiança. Perfeito, um trabalho assim: 4 horas por dia, sem demandar experiência. Bom. E estranho. Mas... ¡dale!. Que podia passar?

Coisas de centro de cidade. De subsolo, este cenário categórico, público, onde todos podem passar, anonimamente. Convive-se e não se sabe com que; cumprimenta-se, não se aprofunda. O medo dá ao corpo estado de alerta: qualquer ameaça, disfarça-se e desvencilha-se, discretamente. Ou não, desaparece.

Para tanto, para viver uma história assim, há de se estar disposto. Vai-se ao tato, superando-se até quando não se deva mais. É certo que às vezes vai-se muito longe, mas repito: que poderia acontecer? Aos verbos de uma amiga: que me faz mais especial que a multidão?

Bom, havia outras meninas, caso contrário, não me atreveria a tanto. Uma fila, algumas informações flutuantes e olhos – e ouvidos – abertos. Participei de uma entrevista em conjunto, que, embora possuindo a inegável condição de estrangeira, deu-me certa igualdade. Ótimo, sentia-me incluída. Além disso, a estupidez e o terrorismo soavam democráticos. Um blá desses ordinários, para que não se pense ou que se sufoque na própria necessidade. “Quer ou não quer trabalhar?” Uma a uma ia-se acertando interesse, para a seguinte fase, da capacitação. E, para tanto, haveria de pagar um sinal ou a inscrição inteira. Sinal porque o curso possuía vagas limitadas. Bom que era de pouco valor. Estranho porque tudo era muito estranho. Mas fazer o que? A pergunta latente, a reforçar o discurso de trabalho, de vontade a condicionamento mental, esses primários dos primeiros lugares comuns acerca do tema. E, ya está, que molhasse enfim a chuva, não estava para perder essa por mim. Antes a negação que a desistência, render-se nunca, já dizia (em outros termos) Van Dame.

No outro dia, na hora marcada, fui. Estava chovendo realmente e não foi empecilho para minha grandessíssima vontade de conseguir um trabalho. Ainda não sabia ao certo de que se tratava, por alto, algo de cosméticos. Estava bom não ser rejeitada de início pelo sotaque, pela falta de CUIL (documento para empregados), DNI (documento nacional de identificação) e tudo mais. Também estava bom não me escravizar tão ligeiro a esta que é a prisão trabalhista full time. Essa ilusão toda que se cria, de dignidade, de prosperidade, de necessidade, etc e etc invertido. Ainda havia também uma curiosidade espetacular, a superação também que move as pernas, dá ânimo, ir-se, jogar-se! E, “ojo”, não sou “abestada”.


Encontrei duas meninas que havia conhecido na fila. Compartilhávamos alguma desconfiança, mas lá estávamos. Chegando outras e o nosso então instrutor, entramos na sala. Apesar da seriedade do propósito, estava divertindo-me. Calcei um bom personagem, atenta a postura e cuidados com minha integridade. Escutei tudo com atenção, de modo também a descobrir alguma marmota. O certo é que passamos 3 horas de pé, respondendo perguntas-armadilhas que se revertiam em números os quais o senhor não pretendia revelar significado. Duas desistiram por cansaço, aí descobrimos que o labor era de pé, sem ajuda de paredes ou apoios para atenuar. Não me abalou, vejam a quantas andavam minha “atitude” e minha “perseverança”.

Ao fim, apresentou-nos o produto, a maneira, as condições, a natureza do trabalho. Os fatos ficavam mais claros, surgiam mais informações, mas permanecia sempre o tom estranho. Perpetuava-se algum mistério. Concordei em fazer o trabalho prático, levei meu material para casa, aprovada até essa etapa. Fiz algumas amigas, conversamos no caminho, repartimos os estranhamentos.


Cheguei à casa, viva. Pensemos assim. E compartilhei a história, porque não poderia haver fábula tão fantástica para contar. Chegamos à conclusão de que talvez o tom estranho não passasse nunca e poderia causar danos irreparáveis no futuro, digamos assim. Enfim, já havia cumprido o papel predestinado: nada mais eficiente como terapia da libertação. Dos bloqueios, do idioma, da timidez. Mas há sabedoria em não abusar dos ensinamentos, “hacer caso” ao feeling, saber parar. No outro dia, apesar do discurso já imaginado, devolvi tudo. Escutei o “nem sequer tentou”, com a certeza do quão havia tentado e logrado.

“Abriu a porta e entrou. O homem lembrou sua condição. Não, e não faz mal. Saiu com todos seus pedaços.” (terapia da libertação parte II)

Embora não tão cordial, como no outro caso, passou. Entanto, não nego: ainda repercute o risco da proximidade que um sente ao dar-se com o perigo. Ainda que tudo seja obra da cabeça. O certo é que a cabeça deu-me um conto e o conto, uma ‘alta’ social.


Fim da terapia da libertação: por 10 pesos e dois dias. Garantida alguma emoção.

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